sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Shadow (Ying,2018)



O cinema é uma arte intrinsecamente ligada ao equilíbrio. São diversos elementos que compõe um filme e a harmonia entre eles pode alçar a obra ao patamar da imortalidade, ao panteão dos clássicos ou ao esquecimento completo. Existem filmes moldados para atingir esses altares, mas que acabam ficando pelo caminho (principalmente os muitos enlatados que surgem no período do Oscar, prontos para tentar fisgar algum prêmio e usurpar alguma glória. Existem obras que são injustiçadas, mas o tempo, um juiz razoavelmente justo, dá conta de resgatar estas películas.

O diretor Zhang Yimou é um profissional que entende a grandiosidade que a linguagem cinematográfica pode simbolizar. Seus filmes são de um arroubo visual único - imensidão e beleza unidas para se contar uma história e arrebatar o público. E ele quase sempre consegue isso com a maioria das pessoas, mas ele ainda não conseguiu me atingir com nenhum de seus filmes. Um adendo pessoal e importante é que eu nunca fui muito fã do estilo Wuxia (gênero chinês de fantasia/artes marciais/medieval), mas tenho admiração por estes filmes e sigo na esperança de encontrar algum (livro ou filme) que me conquiste inteiramente.

Vamos falar sobre SHADOW, um verdadeiro épico chinês sobre um reino ameaçado pelos vizinhos com uma possível expulsão e o inevitável confronto entre esses soberanos e seus súditos. Nesta realidade de tensão, um general, conhecido por sua bravura e eficiência, elabora um plano nefasto: o treino/criação de uma sombra (um espelho seria uma analogia mais precisa) - um jovem que assumirá o seu papel pela semelhança física e irá assumir o seu lugar, enquanto é treinado para não ser percebido por ninguém, nem mesmo pelo próprio rei. O segredo só é conhecido pelo general, sua esposa e a tal sombra.


Existe um elemento mitológico realmente interessante neste personagem, aquela velha (porém ainda intrigante) ideia de criador/criatura já muito explorada em diversas outras histórias. Adicionado a isto, o filme posiciona, como num tabuleiro de xadrez, uma gama de outros personagens envolvidos com suas intensões e objetivos. O problema é que são tantos elementos apresentados que é praticamente impossível que alguns desses personagens acabem se tornando um tanto quanto rasos, pois não há metragem ou roteiro suficiente para preenchê-los.

A própria trama principal da "sombra"/criador acaba tomando um rumo previsível - a sugestão de um triângulo amoroso entre o general, sua esposa e o vassalo. Pessoalmente, essa direção da história não me agrada, mas o pior não é isso - lá pelas tantas, o filme praticamente passa a ignorar esse movimento, pois há muitas pontas do enredo a serem resolvidas, além de muitos elementos acrescidos que não adicionam complexidade, mas sim gordura a um roteiro já sobrecarregado. 

Isso deixa o filme pesadão em seu ritmo, transformando suas quase duas horas de projeção em uma sensação de um filme de cinco horas, o que, convenhamos, não é nada agradável. Aliado a essa sensação, a avalanche de beleza apresentada acaba provocando mais exaustão do que arrebatamento. Existe a possibilidade de o filme causar maior impressão numa tela de cinema (assisti o filme em casa), mas isto não deveria ser o caso. Entretanto, não posso negar a beleza de algumas cenas, especialmente o treino entre criador e criatura num tablado com o formato do Yin Yang - simplesmente divina.


A batalha na chuva também é muita bela. Há de se destacar a linda fotografia cinzenta do filme, tornando a atmosfera ainda mais onírica, mesmo diante de situações que seriam verdadeiros pesadelos, pela violência ou tensão das ações dos personagens. A sensação é de estarmos num reino onde só existem dois elementos - o vento e a chuva - e Zhan Yimou sabe filmá-los muito bem. 

Outro destaque é o personagem do rei, interpretado de maneira irresistível por Zheng Kai. Seu personagem é traiçoeiro e amável e, mesmo em momentos hediondos, é difícil não ser cativado por sua complexa personalidade. Não há caminhos fáceis na construção dele, mesmo sendo fácil identificá-lo como um antagonista. Uma performance realmente notável.

A impressão final é de que SHADOW poderia ser, de fato, um filme inesquecível e é possível que o será para muitos. Para mim, entretanto, foi definitivamente uma experiência visual maravilhosa, mas nada memorável em seu enredo, o que me parece quase um crime de se dizer, diante da beleza da obra. Em minha defesa, porém, tenho a intenção de ter este filme em minha coleção e, em algum momento, revisitar este hipnotizante universo. Talvez, tivesse funcionado melhor para mim se fosse um livro, com mais espaço para desenvolver a trama. Se alguém conhecer algum livro Wuxia, me dê um toque.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Falcões Da Noite (Nighthawks, 1981)


Existe algo de extraordinário em FALCÕES DA NOITE - uma produção bastante problemática, com brigas entre atores, troca de diretores, um corte inicial de duas horas e meia e intromissões do estúdio - um dos grandes filmes policiais dos anos 80, apesar de não ser tão lembrado nos dias atuais. Como tantas dificuldades conseguiram render um filmaço desses?

Minha primeira observação é de que estamos diante de um filme de fato. O que quero dizer com isto é que a trama é relativamente simples, mas aproveita muito bem a linguagem cinematográfica - as lindas tomadas noturnas e externas de New York nos anos 80, com direito a sujeira, violência e o neon da época; a espetacular perseguição à pé pelo metrô, de tirar o folego, com um inimigo que transpira periculosidade; a trilha sonora urbana, sensual e chique, o figurino e os cortes de cabelos - tudo funciona em NIGHTHAWKS.

Mesmo sem saber da quantidade de cenas que foram cortadas (é possível encontrar muita discussão a respeito na internet. O mais recente lançamento do filme, em blu-ray pela Shout Factories, trouxe vários documentários novos com diversos membros da produção, mas o mesmo corte final da obra), dá para perceber que muita coisa foi tirada do filme. Isso não atrapalha a obra, de maneira alguma, porém fiquei muito curioso em assistir essa versão Uncut do filme, com mais desenvolvimento dos personagens e mais violência.


Os cortes no filme dão um ar ainda mais seco ao filme, sem tempo para firulas narrativas. A grandeza do elenco evita que os personagens se percam como incompletos, pois as atuações são todas precisas. A começar por Sylvester Stallone, com um visual muito marcante,  dando vida ao detetive Deke DaSilva, um detetive da polícia nas noites de Nova Iorque, junto com seu parceiro Matthew Fox (interpretado por Billy Dee Willians). FALCÕES DA NOITE, aliás, era o nome dado a esses patrulheiros noturnos de Manhattan. Não há tanto tempo de cena com os dois juntos, mas é possível perceber a química entre os dois e os conflitos/demônios internos de cada um, como na cena em que Fox quase explode a cabeça de um bandido na frente de um garoto ou DaSilva hesitando em atirar no vilão do filme, na emblemática perseguição pelo metrô.

O que dizer então de Rutger Hauer? O saudoso holandês encarou o primeiro papel da carreira num filme norte americano com muita força, antagonizando Stallone dentro e fora das telas, segundo as lendas da produção. Seu terrorista freelancer Wulfgar é um vilão aterrorizante, por ser lunático, mas não idiota ou simplesmente maléfico - é o oposto de DaSilva: convicto, resoluto, charmoso e não leva desaforo para casa. Na atuação magnífica de Rutger Hauer, sempre com aquela aptidão de atuar com os olhos, passando do sedutor para o mortífero em segundos, Wulfgar é um macho alfa e DaSilva só consegue vencê-lo quando finalmente assume a posição de alfa (mesmo que, ironicamente, ele o faça vestido de mulher). 


Essas sutilezas psicológicas dos personagens e do filme, realmente impressionam. Ao mesmo tempo, difícil não lamentar a ausência de mais cenas explorando a distância entre esses dois personagens. As atrizes Lindsay Wagner e a indiana Persis Khambatta, mesmo com excelente presença de cena, acabaram prejudicadas com estes cortes, que certamente davam ainda mais profundidade a esses personagens.

NIGHTHAWKS é um verdadeiro clássico esquecido dos anos 80, meus amigos. Não só pelas suas qualidades cinematográficas, como pelas lendas e dificuldades dos bastidores, uma joia dos filmes policiais. Stallone e Hauer estão inesquecíveis em seus papeis, figurando tranquilamente entre os melhores de suas respectivas carreiras e um dos melhores filmes desta incrível e saudosa década. 

Rutger Hauer (1944-2019)


"I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near de Tannhauser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die."