Até o presente momento, Amor Só de Mãe configura-se, para mim, como o melhor curta-metragem de horror já produzido por um cineasta brasileiro. Eu só fiquei sabendo dele por meio da saudosa revista Cine Monstro e também pelos merecidos prêmios conquistados em festivais do mundo inteiro.
O filme acompanha o calvário de um pescador que acaba se envolvendo com a mulher errada – uma bruxa, adoradora do diabo. E a tal bruxa irá mandá-lo para uma tarefa terrível: assassinar a própria mãe, com quem o pescador ainda vive.
Com uma trama extremamente simples, o diretor Dennison Ramalho trabalha com o horror de maneira magnífica, criando uma atmosfera incômoda e perversa. E o trabalho de áudio é uma beleza: o som monótono de uma oração fica tocando durante boa parte da projeção, simplesmente genial.
O filme conta com a presença de Vera Barreto Leite, Débora Muniz e Everaldo Pontes, todos excelentes; foi um dos curtas mais caros já feitos no Brasil e isso é percebido claramente pelas inúmeras qualidades técnicas da obra. Entretanto, não tiremos o mérito de Ramalho, que é um grande realizador, um diretor de mão cheia, criando uma atmosfera sombria e esbanjando talento, sem sustos fáceis e outras bobeiras que assombram muitos filmes do gênero. Eu espero ver muitas outras obras do cara (esse ano saiu o seu mais novo curta-metragem, altamente recomendado, Ninjas!).
A estética e o clima da obra me lembraram os filmes de horror mais sérios dos anos 70, como O Exorcista, Sentinela dos Malditos e outras obras que tratavam sobre temas sérios envolvendo religião, possessões e satanismo. Amor Só de Mãe tem esse ingrediente presente, misturado com elementos extremamente regionais, como a religiosidade da mãe do pescador, o ambiente decadente e lúgubre e o já comentado som de oração, parecido com o de uma fita cassete antiga e bizarra.
Para quem tiver interesse, assistam no portal Porta Curtas e prestigiem esta verdadeira jóia tupiniquim (para assisti-lo, clique aqui). Abaixo, eu reproduzo uma entrevista de Dennison Ramalho ao site nacional da Revista Rolling Stones. Nela, o diretor falará mais sobre o seu novo trabalho (Ninjas) e sobre os desafios de ser um diretor de filmes de horror no Brasil.
Como tem sido o desempenho de Ninjas nos festivais nacionais e internacionais? Compare com o desempenho de Amor Só de Mãe.
Olha, o Ninjas começou sua carreira onde a do Amor Só de Mãe terminou. Já de cara estreamos e ganhamos o prêmio de melhor curta pelo público (Audience Award) no Fantasia Film Festival - atualmente o maior festival de cinema fantástico do mundo, em Montreal, no Canadá. O Flávio Bauraqui (que interpreta nosso protagonista) ganhou o prêmio de melhor ator na competição de curtas do Festival de Gramado e o Paulo Sacramento (nosso montador) ganhou melhor montagem, também em Gramado. Estamos agora programados para o Fantastic Fest, em Austin, nos Estados Unidos.
Qual é o caminho natural de um curta no Brasil? Muda algo quando o assunto é horror?
Essa pergunta é complicada. Ou o curta se torna um clássico (tipo um Ilha das Flores da vida), ou praticamente cai no esquecimento. Acho que por isso é importante qualquer cabra que faz um curta entender o que é o curta-metragem brasileiro pra poder fazer diferente. O que a gente vê nos festivais é uma produção vibrante, mas um tanto repetitiva, ou televisiva/tosca demais.
Como você conheceu o conto que deu origem ao roteiro? O Marco de Castro, autor do conto, trabalhou com você no roteiro. Como é trabalhar com o suposto dono da história? Foi tranquilo?
Eu conheci o Marcão num fórum sobre filmes de horror na internet, há muitos anos. Um dia resolvi conhecer o blog dele, o Casa do Horror. Eu já andava há muito tempo tentando entender o cenário da literatura de terror no Brasil. Tirando o brilhante ciclo de quadrinhos dos anos 60-80, nunca encontrei nada em prosa que me interessasse. Havia autores e livros, mas todos muito pretensiosos, ou plagiadores. Uma "clichezada" medonha! Quando li o blog do Marcão, vi que tinha algo sujo por trás daqueles contos. Foi nesse ponto que resolvi conhecer o Marcão pessoalmente, e descobri sua vivência como jornalista na madrugada de São Paulo (que lhe rendeu o apelido de "Olheiro da Desgraça"). Eu percebi que estava diante de uma ficção consistente, aterradora, e brasileira até a medula! E sabe o que é o melhor? É brasileira sem ser folclórica, brejeira, caipira... É brasileira urbana, podre, suja e brutal! Eu gerei umas duas ou três versões do roteiro com o Marcão. Não trabalhamos juntos, mas íamos discutindo e esculpindo o roteiro em conversas por e-mail ou telefone. Tivemos também a contribuição do Marcelo Veloso, um roteirista do Rio, que escreveu e aprimorou a textura os diálogos do curta.
Ninjas tem um roteiro muito mais detalhado do que Amor Só de Mãe. A que você credita isso?
Não acho o roteiro mais detalhado. Acho só o filme mais longo e com mais personagens. Acho que isso é o que passa a impressão de ser mais detalhado.
Como foi o processo de pesquisa para o curta? Você chegou a conhecer alguém que esteve envolvido com algum grupo de extermínio?
Não conheci ninguém envolvido em nenhum grupo de extermínio, mas (além do conto do Marcão) li o Rota 66, do Caco Barcellos, li a "resposta" tacanha da PM ao livro - um outro livro chamado Matar ou Morrer, do Conte Lopes. Assisti também aos filmes oficialiescos/chapa-branca da PM: Matar ou Morrer (adaptação do diretor Clery Cunha do livro do Conte Lopes, boçalmente estrelada pelo próprio fazendo papel de si mesmo) e Rota Comando (outra pérola trash - uma espécie de resposta tosca da Rota ao Tropa de Elite, que nem pro cinema foi. Só ficou no camelódromo mesmo). Conversei também longamente com um policial civil, que me contou vários podres.
Os atores de Ninja estão muito bem. Como é o seu processo de seleção e preparação?
Eu e o Tomás Rezende (um excelente preparador de elenco) trabalhamos juntos no processo de ensaio, que envolvia aquecimentos físicos, música, e ensaios de situações emocionais similares as do roteiro, mas com criações imaginárias dos próprios atores. Nos baseamos no método do Sanford Meisner, que é um trabalho de imaginação super-saudável e colaborativo com o elenco. A seleção foi feita com base no trabalho anterior dos próprios atores, de quem eu era fã, ou já havia trabalhado em outros trampos.
O curta foi feito com incentivos culturais? Você gastou dinheiro do seu bolso? Pergunta ingênua: dá pra ganhar dinheiro com curta-metragem de horror no Brasil ou exterior?
O curta foi patrocinado por um prêmio da Prefeitura de São Paulo. Tivemos empresas parceiras que entraram como coprodutoras com serviços e equipamento. Mas gastei dinheiro meu, sim. Perdi meu carro pra sanar as dívidas do curta e precisei pedir um pequeno socorro pra família. Não dá pra ganhar grana com curta, em lugar nenhum do mundo. Pelo menos não grana que zere o vermelho que fica. Às vezes aparece alguém oferecendo 200 contos pra passar em alguma mostra, ou uma oferta de US$ 500 pra vender uma exibição pra TV, ou o direito de lançar o filme numa coletânea em DVD. Mas só pintam essas merrecas. Não adianta, curta TEM QUE SER o caminho para o longa. Pra quem faz, ele não serve pra outra coisa...
Qual o orçamento do Ninjas?
R$ 80 mil mais, diríamos, uns R$ 50 mil que foram cobertos com acordos de coprodução com empresas, a graninha do meu bolso e o meu Corsa, que eu tive que "passar nos cobres"!
O filme teve o apoio ou a colaboração da PM paulista?
Colaboração da PM? CLARO!!! Esse filme não poderia existir sem a valiosa inspiração dos atos dos grupos de extermínio em atividade na instituição!!! Agora, se você está se referindo a colaboração na produção, não. Nenhuma. Mas a gente nem precisou.
Há alguns sustos no filme e cenas de gore absoluto. Também há fantasmas e uma piração com Jesus Cristo e os evangélicos. O horror hoje é uma coisa só, em termos de subgênero?
Não. O horror sempre foi um gênero muito multifacetado. Tem vertentes e subgêneros que flertam com o humor, com o suspense, e com a tragédia (que eu acho que é o caso dos meus curtas). Mas me parece que uma escola mais realista, em termos de dramaturgia, surgiu a partir de filmes dos anos 70, como O Iluminado, O Exorcista, A Profecia. É a tal escola do terror "sério". Gosto de pensar que me incluo nessa verve. E existe também um certo extremismo/radicalismo recente na dose de violência (que está bombando, desde que uma nova onda de filmes franceses de terror, bastante sofisticados, apareceu nos últimos dez anos). Me identifico com essa turma. Eles estão levando o terror para um novo nível de originalidade.
Você poderia citar alguns destes filmes e diretores?
Claro! Os filmes do Gaspar Noé (Irreversível, Sozinho Contra Todos, que não são filmes de horror, mas cuja violência extrema é superapreciada pelos fãs do gênero), o filme Martyrs, do Pascal Laugier, Trouble Every Day, da Claire Denis, Alta Tensão, do Alexandre Aja, e por aí vai...
As cenas envolvendo cristãos, em Ninjas, são bastante tensas e densas. Qual sua intenção com elas? Você tem alguma religião?
Não tenho religião nenhuma. Mas me apavora um pouco a ideia de que uma pessoa possa torcer suas crenças de forma a torná-las inspirações e epifanias. Gente que comete atos hediondos, justificando-os como "o trabalho de Deus". Eu também acho que existe uma contradição brutal entre o discurso pacifista de Cristo e o fato de existirem cristãos armados até os dentes mandando chumbo na galera, dentro da PM. Fiquei chocado ao saber que o policial mais brutal envolvido no caso da Favela Naval (o soldado conhecido como "Rambo") era um evangélico. Soube também que dentro do fucking BOPE existe um grupo tipo "BOPE de Cristo". Dentro do BOPE, mano?! Tem crente dentro do Caveirão, e botando saco plástico na cara da galera? Me poupe, porra! Aliás, é interessante ver como esses grupos de extermínio se apropriam de figuras e imagens da cultura de massa (leia-se dos filmes de ação) pra se fazerem de "heróis". Tem a gangue dos "Ninjas" (que se chamam assim porque usam máscaras tipo as dos ninjas dos filmes pra matar gente); tem a gangue dos "Highlanders", que se chamam assim porque cortam as cabeças dos exterminados (como os Highlanders no filme). E tem esse tal de "Rambo"... um modelo de evangélico!!!
Fale sobre a trilha sonora. Você toca algum instrumento?
Não toco nada não! A trilha foi composta por um gênio de compositor chamado Paulo Beto! Guardem esse nome! O futuro da música de cinema no Brasil passa por essas mãos! Nos inspiramos em muita música "apavorante": Penderecki, Diamanda Galás, Peter Maxwell Davies, e bandas de black metal e drone, tipo o Sunn O))).
Você acha que ainda existe preconceito com o cinema de gênero no Brasil? O horror sofre certo descaso por aqui, não?
Eu acho que o terror é um gênero impopular junto à comunidade intelectual no Brasil. E esta comunidade, que gere os mecanismos de financiamento da produção de cinema, vê o gênero com maus olhos. Falta visão comercial, falta pensar que os filmes estrangeiros do gênero rendem dinheiro no Brasil, e têm apelo comercial estável junto a grupos cinéfilos mais jovens. Sem essas informações de mercado, empresas e concursos de financiamento esbarram com um projeto de terror e não o escolhem para financiamento simplesmente baseando-se nos critérios "não gosto de filme de terror" ou "não queremos associar a marca da empresa a um projeto desse gênero." É foda!
Você ganhou uma bolsa de estudos de cinema em Nova York? Quais os planos para os próximos meses?
Eu vou estudar Roteiro e Direção num Mestrado na Columbia University (em Nova York) com uma bolsa da Comissão Fulbright. Vou ficar pelo menos três anos por aqui, pra roteirizar, roteirizar, roteirizar, filmar, filmar e filmar!
Você trabalhou em Encarnação do Demônio, do Mojica. Como foi trabalhar com "o homem"? A bilheteria do filme foi a esperada? Pretende fazer algo o Mojica novamente?
Trabalhar com o Mojica é sempre massa! O cara é foda! Um exemplo pra qualquer cineasta! Eu aprendi muito sobre montagem, ótica e direção com ele. O filme foi mal nas bilheterias, sabe? Mas acho que isso se deve a fatores que vão além do gênero. Depois do Encarnação do Demônio eu escrevi outro longa para o Mojica chamado O Devorador de Olhos (uma releitura de um roteiro engavetado dele e do Rubens F. Lucchetti, que nunca foi realizado). Nesse, o Mojica não interpreta o Zé do Caixão, mas sim um médium curandeiro, tipo um Dr. Fritz, que é possuído por um espírito que se alimenta de olhos. Tomara que esse projeto engate! Precisa-se de produtor!
Você já exibiu seus filmes nos Estados Unidos? Qual a recepção?
Exibi meus curtas em alguns festivais. Mas não estava lá para medir a recepção. Nunca ganhei um prêmio nos EUA. Ainda...
Tenho a impressão que o horror oriental é uma das grandes influências do filme. Confere?
Nah... Gosto mais de filmes de horror franceses, austríacos...
Sério? Achei que tinha tudo a ver com horror oriental as aparições do fantasma no teto e ao fundo, desfocado; a coisa do espírito que teve uma morte violenta e não consegue se libertar do plano terreno; o "rotten Christ" com aquele treco saindo de dentro dele... Vai ver é falta de referência minha. Mas não será uma tentativa sua de não associar o seu filme a uma onda que já passou? Que foi incrível, mas já foi absorvida até por Hollywood...
Olha, o J-Horror (que é como ficou conhecida essa onda do terror japonês) também se alimentou de referências de outras cinematografias. Ninguém inventou a roda. Nunca fui muito fã dos filmes orientais. E os de que eu gosto (os filmes do Takashi Miike) não são filmes de fantasma. Se houve um diálogo estilístico, foi coincidência. Na verdade, o filme sueco de vampiro Deixa Ela Entrar [que ganhou remake norte-americano] foi muito mais inspirador nas aparições do fantasma-criança do que qualquer dos filmes do ciclo japonês.
Você poderia fazer uma análise de sua carreira como cineasta? O que mudou em você como diretor de Amor... pra cá? Suas convicções cinematográficas mudaram?
Cara, minha carreira como cineasta? Difícil. A luta pela sobrevivência dos cineastas no Brasil é difícil. O mercado está num momento esquisito, se redesenhando. Eu vivo estas dificuldades. Já até pensei em mandar tudo à merda algumas vezes, mas no dia seguinte o telefone tocava e eu ganhava um concurso pra escrever um roteiro ou dirigir outro filme. Minhas convicções não mudaram em nada! Eu quero é tocar o puteiro! E espancar os espectadores! É claro que eu preciso ganhar a vida, como todos. É por isso que existem, na assinatura de meus filmes, uma distinção. Existem os filmes "dirigidos por Dennison Ramalho" e os "cometidos por Dennison Ramalho" (isso é literal, está na tela!). Os "dirigidos por" são os filmes e trampos que faço pra viver. E que faço com tesão! Mas os "cometidos por" são os meus filmes autorais, de terror. E são esses que mostram o que sei fazer de melhor na vida.
Olha, o Ninjas começou sua carreira onde a do Amor Só de Mãe terminou. Já de cara estreamos e ganhamos o prêmio de melhor curta pelo público (Audience Award) no Fantasia Film Festival - atualmente o maior festival de cinema fantástico do mundo, em Montreal, no Canadá. O Flávio Bauraqui (que interpreta nosso protagonista) ganhou o prêmio de melhor ator na competição de curtas do Festival de Gramado e o Paulo Sacramento (nosso montador) ganhou melhor montagem, também em Gramado. Estamos agora programados para o Fantastic Fest, em Austin, nos Estados Unidos.
Qual é o caminho natural de um curta no Brasil? Muda algo quando o assunto é horror?
Essa pergunta é complicada. Ou o curta se torna um clássico (tipo um Ilha das Flores da vida), ou praticamente cai no esquecimento. Acho que por isso é importante qualquer cabra que faz um curta entender o que é o curta-metragem brasileiro pra poder fazer diferente. O que a gente vê nos festivais é uma produção vibrante, mas um tanto repetitiva, ou televisiva/tosca demais.
Como você conheceu o conto que deu origem ao roteiro? O Marco de Castro, autor do conto, trabalhou com você no roteiro. Como é trabalhar com o suposto dono da história? Foi tranquilo?
Eu conheci o Marcão num fórum sobre filmes de horror na internet, há muitos anos. Um dia resolvi conhecer o blog dele, o Casa do Horror. Eu já andava há muito tempo tentando entender o cenário da literatura de terror no Brasil. Tirando o brilhante ciclo de quadrinhos dos anos 60-80, nunca encontrei nada em prosa que me interessasse. Havia autores e livros, mas todos muito pretensiosos, ou plagiadores. Uma "clichezada" medonha! Quando li o blog do Marcão, vi que tinha algo sujo por trás daqueles contos. Foi nesse ponto que resolvi conhecer o Marcão pessoalmente, e descobri sua vivência como jornalista na madrugada de São Paulo (que lhe rendeu o apelido de "Olheiro da Desgraça"). Eu percebi que estava diante de uma ficção consistente, aterradora, e brasileira até a medula! E sabe o que é o melhor? É brasileira sem ser folclórica, brejeira, caipira... É brasileira urbana, podre, suja e brutal! Eu gerei umas duas ou três versões do roteiro com o Marcão. Não trabalhamos juntos, mas íamos discutindo e esculpindo o roteiro em conversas por e-mail ou telefone. Tivemos também a contribuição do Marcelo Veloso, um roteirista do Rio, que escreveu e aprimorou a textura os diálogos do curta.
Ninjas tem um roteiro muito mais detalhado do que Amor Só de Mãe. A que você credita isso?
Não acho o roteiro mais detalhado. Acho só o filme mais longo e com mais personagens. Acho que isso é o que passa a impressão de ser mais detalhado.
Como foi o processo de pesquisa para o curta? Você chegou a conhecer alguém que esteve envolvido com algum grupo de extermínio?
Não conheci ninguém envolvido em nenhum grupo de extermínio, mas (além do conto do Marcão) li o Rota 66, do Caco Barcellos, li a "resposta" tacanha da PM ao livro - um outro livro chamado Matar ou Morrer, do Conte Lopes. Assisti também aos filmes oficialiescos/chapa-branca da PM: Matar ou Morrer (adaptação do diretor Clery Cunha do livro do Conte Lopes, boçalmente estrelada pelo próprio fazendo papel de si mesmo) e Rota Comando (outra pérola trash - uma espécie de resposta tosca da Rota ao Tropa de Elite, que nem pro cinema foi. Só ficou no camelódromo mesmo). Conversei também longamente com um policial civil, que me contou vários podres.
Os atores de Ninja estão muito bem. Como é o seu processo de seleção e preparação?
Eu e o Tomás Rezende (um excelente preparador de elenco) trabalhamos juntos no processo de ensaio, que envolvia aquecimentos físicos, música, e ensaios de situações emocionais similares as do roteiro, mas com criações imaginárias dos próprios atores. Nos baseamos no método do Sanford Meisner, que é um trabalho de imaginação super-saudável e colaborativo com o elenco. A seleção foi feita com base no trabalho anterior dos próprios atores, de quem eu era fã, ou já havia trabalhado em outros trampos.
O curta foi feito com incentivos culturais? Você gastou dinheiro do seu bolso? Pergunta ingênua: dá pra ganhar dinheiro com curta-metragem de horror no Brasil ou exterior?
O curta foi patrocinado por um prêmio da Prefeitura de São Paulo. Tivemos empresas parceiras que entraram como coprodutoras com serviços e equipamento. Mas gastei dinheiro meu, sim. Perdi meu carro pra sanar as dívidas do curta e precisei pedir um pequeno socorro pra família. Não dá pra ganhar grana com curta, em lugar nenhum do mundo. Pelo menos não grana que zere o vermelho que fica. Às vezes aparece alguém oferecendo 200 contos pra passar em alguma mostra, ou uma oferta de US$ 500 pra vender uma exibição pra TV, ou o direito de lançar o filme numa coletânea em DVD. Mas só pintam essas merrecas. Não adianta, curta TEM QUE SER o caminho para o longa. Pra quem faz, ele não serve pra outra coisa...
Qual o orçamento do Ninjas?
R$ 80 mil mais, diríamos, uns R$ 50 mil que foram cobertos com acordos de coprodução com empresas, a graninha do meu bolso e o meu Corsa, que eu tive que "passar nos cobres"!
O filme teve o apoio ou a colaboração da PM paulista?
Colaboração da PM? CLARO!!! Esse filme não poderia existir sem a valiosa inspiração dos atos dos grupos de extermínio em atividade na instituição!!! Agora, se você está se referindo a colaboração na produção, não. Nenhuma. Mas a gente nem precisou.
Há alguns sustos no filme e cenas de gore absoluto. Também há fantasmas e uma piração com Jesus Cristo e os evangélicos. O horror hoje é uma coisa só, em termos de subgênero?
Não. O horror sempre foi um gênero muito multifacetado. Tem vertentes e subgêneros que flertam com o humor, com o suspense, e com a tragédia (que eu acho que é o caso dos meus curtas). Mas me parece que uma escola mais realista, em termos de dramaturgia, surgiu a partir de filmes dos anos 70, como O Iluminado, O Exorcista, A Profecia. É a tal escola do terror "sério". Gosto de pensar que me incluo nessa verve. E existe também um certo extremismo/radicalismo recente na dose de violência (que está bombando, desde que uma nova onda de filmes franceses de terror, bastante sofisticados, apareceu nos últimos dez anos). Me identifico com essa turma. Eles estão levando o terror para um novo nível de originalidade.
Você poderia citar alguns destes filmes e diretores?
Claro! Os filmes do Gaspar Noé (Irreversível, Sozinho Contra Todos, que não são filmes de horror, mas cuja violência extrema é superapreciada pelos fãs do gênero), o filme Martyrs, do Pascal Laugier, Trouble Every Day, da Claire Denis, Alta Tensão, do Alexandre Aja, e por aí vai...
As cenas envolvendo cristãos, em Ninjas, são bastante tensas e densas. Qual sua intenção com elas? Você tem alguma religião?
Não tenho religião nenhuma. Mas me apavora um pouco a ideia de que uma pessoa possa torcer suas crenças de forma a torná-las inspirações e epifanias. Gente que comete atos hediondos, justificando-os como "o trabalho de Deus". Eu também acho que existe uma contradição brutal entre o discurso pacifista de Cristo e o fato de existirem cristãos armados até os dentes mandando chumbo na galera, dentro da PM. Fiquei chocado ao saber que o policial mais brutal envolvido no caso da Favela Naval (o soldado conhecido como "Rambo") era um evangélico. Soube também que dentro do fucking BOPE existe um grupo tipo "BOPE de Cristo". Dentro do BOPE, mano?! Tem crente dentro do Caveirão, e botando saco plástico na cara da galera? Me poupe, porra! Aliás, é interessante ver como esses grupos de extermínio se apropriam de figuras e imagens da cultura de massa (leia-se dos filmes de ação) pra se fazerem de "heróis". Tem a gangue dos "Ninjas" (que se chamam assim porque usam máscaras tipo as dos ninjas dos filmes pra matar gente); tem a gangue dos "Highlanders", que se chamam assim porque cortam as cabeças dos exterminados (como os Highlanders no filme). E tem esse tal de "Rambo"... um modelo de evangélico!!!
Fale sobre a trilha sonora. Você toca algum instrumento?
Não toco nada não! A trilha foi composta por um gênio de compositor chamado Paulo Beto! Guardem esse nome! O futuro da música de cinema no Brasil passa por essas mãos! Nos inspiramos em muita música "apavorante": Penderecki, Diamanda Galás, Peter Maxwell Davies, e bandas de black metal e drone, tipo o Sunn O))).
Você acha que ainda existe preconceito com o cinema de gênero no Brasil? O horror sofre certo descaso por aqui, não?
Eu acho que o terror é um gênero impopular junto à comunidade intelectual no Brasil. E esta comunidade, que gere os mecanismos de financiamento da produção de cinema, vê o gênero com maus olhos. Falta visão comercial, falta pensar que os filmes estrangeiros do gênero rendem dinheiro no Brasil, e têm apelo comercial estável junto a grupos cinéfilos mais jovens. Sem essas informações de mercado, empresas e concursos de financiamento esbarram com um projeto de terror e não o escolhem para financiamento simplesmente baseando-se nos critérios "não gosto de filme de terror" ou "não queremos associar a marca da empresa a um projeto desse gênero." É foda!
Você ganhou uma bolsa de estudos de cinema em Nova York? Quais os planos para os próximos meses?
Eu vou estudar Roteiro e Direção num Mestrado na Columbia University (em Nova York) com uma bolsa da Comissão Fulbright. Vou ficar pelo menos três anos por aqui, pra roteirizar, roteirizar, roteirizar, filmar, filmar e filmar!
Você trabalhou em Encarnação do Demônio, do Mojica. Como foi trabalhar com "o homem"? A bilheteria do filme foi a esperada? Pretende fazer algo o Mojica novamente?
Trabalhar com o Mojica é sempre massa! O cara é foda! Um exemplo pra qualquer cineasta! Eu aprendi muito sobre montagem, ótica e direção com ele. O filme foi mal nas bilheterias, sabe? Mas acho que isso se deve a fatores que vão além do gênero. Depois do Encarnação do Demônio eu escrevi outro longa para o Mojica chamado O Devorador de Olhos (uma releitura de um roteiro engavetado dele e do Rubens F. Lucchetti, que nunca foi realizado). Nesse, o Mojica não interpreta o Zé do Caixão, mas sim um médium curandeiro, tipo um Dr. Fritz, que é possuído por um espírito que se alimenta de olhos. Tomara que esse projeto engate! Precisa-se de produtor!
Você já exibiu seus filmes nos Estados Unidos? Qual a recepção?
Exibi meus curtas em alguns festivais. Mas não estava lá para medir a recepção. Nunca ganhei um prêmio nos EUA. Ainda...
Tenho a impressão que o horror oriental é uma das grandes influências do filme. Confere?
Nah... Gosto mais de filmes de horror franceses, austríacos...
Sério? Achei que tinha tudo a ver com horror oriental as aparições do fantasma no teto e ao fundo, desfocado; a coisa do espírito que teve uma morte violenta e não consegue se libertar do plano terreno; o "rotten Christ" com aquele treco saindo de dentro dele... Vai ver é falta de referência minha. Mas não será uma tentativa sua de não associar o seu filme a uma onda que já passou? Que foi incrível, mas já foi absorvida até por Hollywood...
Olha, o J-Horror (que é como ficou conhecida essa onda do terror japonês) também se alimentou de referências de outras cinematografias. Ninguém inventou a roda. Nunca fui muito fã dos filmes orientais. E os de que eu gosto (os filmes do Takashi Miike) não são filmes de fantasma. Se houve um diálogo estilístico, foi coincidência. Na verdade, o filme sueco de vampiro Deixa Ela Entrar [que ganhou remake norte-americano] foi muito mais inspirador nas aparições do fantasma-criança do que qualquer dos filmes do ciclo japonês.
Você poderia fazer uma análise de sua carreira como cineasta? O que mudou em você como diretor de Amor... pra cá? Suas convicções cinematográficas mudaram?
Cara, minha carreira como cineasta? Difícil. A luta pela sobrevivência dos cineastas no Brasil é difícil. O mercado está num momento esquisito, se redesenhando. Eu vivo estas dificuldades. Já até pensei em mandar tudo à merda algumas vezes, mas no dia seguinte o telefone tocava e eu ganhava um concurso pra escrever um roteiro ou dirigir outro filme. Minhas convicções não mudaram em nada! Eu quero é tocar o puteiro! E espancar os espectadores! É claro que eu preciso ganhar a vida, como todos. É por isso que existem, na assinatura de meus filmes, uma distinção. Existem os filmes "dirigidos por Dennison Ramalho" e os "cometidos por Dennison Ramalho" (isso é literal, está na tela!). Os "dirigidos por" são os filmes e trampos que faço pra viver. E que faço com tesão! Mas os "cometidos por" são os meus filmes autorais, de terror. E são esses que mostram o que sei fazer de melhor na vida.
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